domingo, 18 de setembro de 2011

Ninguém foi criado para o inferno


“Então ele dirá aos que estiverem à sua esquerda: ‘Malditos, apartem-se de mim para o fogo eterno, preparado para o Diabo e os seus anjos” – Mateus 25.41.

Naquele sábado o sono insistia em não chegar. A ansiedade de pregar o sermão do domingo agitava-me internamente. Terminei meus estudos, reli o papel escrito arduamente sempre com aquela sensação de não estar devidamente preparado. Orei, tomei um copo de leite quente e liguei a televisão, tentando conciliar-me com o travesseiro.
Acertei com um programa de reportagens sobre a noite paulista. O repórter entrevistava travestis, mostrando a vida e os meandros sórdidos dessa forma de prostituição. Recordo-me de uma cena em que um travesti tentou injetar silicone nas maçãs do rosto, mas o produto não esterilizado necrosou causando-lhe danos irreparáveis na aparência. Numa operação que mesmo dando certo o resultado não deixaria de ser menos bizarro. Suportei apenas alguns minutos naquela viagem aos porões imundos da noite paulistana. Depois de contemplar os becos e os cortiços promíscuos, a tristeza e a exploração do ser humano por cafetinas e cafetões malvados, voltei para minha cama com a sensação de que visitara o inferno.
Deitei minha cabeça no travesseiro pensando se Deus havia criado o ser humano pensando em fazer deles uma escória tão suja. Será que o plano inicial de Deus envolvia uma miséria tão absoluta? Hoje tenho certeza que não! Quando Deus nos criou pensava em nos fazer filhos e filhas íntimos e próximos de seu coração. Deus não nos criou para a desgraça, fomos feitos para partilharmos da felicidade divina. O inferno não foi construído para que os Josés, os Silvas, as Marlenes ou as Cátias morassem nele. O inferno foi construído para o Diabo e seus anjos.
Quando as pessoas transformam seus lares, relacionamentos e a vida em um inferno, não cumprem um desígnio secreto e sinistro de Deus. O inferno frustra Jeová. Deus não quer que ninguém se perca, não se alegra com a morte do ímpio. Pelo contrário, fez tudo o que poderia ser feito para que as pessoas saíssem da estrada que lhes leva para o mais absoluto terror e infelicidade.
Se o inferno não foi projetado por Deus, se ninguém já nasceu para ser destruído, todos os que querem ou que ajudam outros a saírem do inferno, contam com o cuidado do céu. Nenhuma pessoa que queira reverter os processos de morte estará só em sua empreitada.

Ricardo Gondim Rodrigues

domingo, 4 de setembro de 2011

Com a vida à flor-da-pele


Ricardo Gondim

Estou inebriado de beleza, esmagado pelo esplendor.
Sem mais nem menos, sinto-me batizado por uma Presença. Tudo me encanta, tudo me seduz. Passo a gostar de pequenos gestos, relembrar momentos fugidios que perduraram em minha retina e me deram enorme alegria. Em mim, ressuscitam olhares, toques e sílabas soltas que marcaram a minha alma.
Sei que esta presença estranha que me possui é o Espírito. Ele abre um estojo de jóias, que é a saudade, para ressuscitar tudo o que já me fez sorrir.
Estou convencido de que só percebo a sombra de Deus, mas ela é formosa como a asa de uma graúna, gentil como o sorriso de uma criança e forte como o olhar do ancião.
O Vento sopra e, de repente, tudo me fascina. A genialidade poética do Chico Buarque e a doçura do Henry Nouwen se somam à erudição de autores que leio e fico com um impulso de correr, saltar.
Meus olhos se enchem de azul, meu coração acolhe tudo o que vem da negritude. Minha pele se cobre com o rubro da sensualidade. Sinto-me vivo.
Percebo o abraço divino e tudo me arrebata, tudo me endoidece. Vejo-me encharcado de eternidade, assombrado pela vastidão sideral, atraído pelo infinito, desejoso pelo devir. Tenho o olhar absorto no horizonte improvável.
O Espírito vem e tenho anseio de ficar só numa catedral vazia. Sua presença me conduz a trilhas bucólicas. Guardo a sensação de que este companheiro, aquele que faz arder corações, me acompanha.
O Espírito me reveste de amor pela vida. Desfaço os nós da discórdia, quebro as lógicas do ódio e me inundo de bondade. Ganho o ímpeto de gritar: sou de um Reino onde justiça, paz e alegria bailam juntos.
Por algum motivo, no êxtase do sagrado, perfumo a casa com velas aromáticas, leio Pessoa e escuto Bach. Lembro de quem perdi e acalento os que me são caros. O Espírito me deixa com a alma à flor-da-pele. Sinto a vida em estado puro.

Soli Deo Gloria.
(Dedicado a Rubem Alves)